Lei de Cotas
Por uma razão do destino, mas também de decisão de vida, que Júlio Pires migrou da área de Engenharia para um ambiente de grande contato com portadores de necessidades especiais. Com experiência em consultoria para grandes empresas, entrevistamos o profissional para saber os desafios e soluções em Inclusão de PNEs no mercado de trabalho, mais especificamente na cadeia de Limpeza e Conservação. Sabemos que as dificuldades em recrutar e reter esses colaboradores é uma realidade deste mercado. A Lei de Cotas está aí, e precisa ser cumprida. Não obstante os valores de multas, a empresa precisa desempenhar seu papel social. Qual a saída então?
Como ingressou neste mercado? Sou engenheiro mecânico metalurgista. Trabalhei boa parte da minha vida em indústria, quando de uma hora para outra me vi na área de Informática – implementação e consultoria de sistemas de gestão empresarial. Foi quando tive contato com PNEs, principalmente visuais. E um deles me sugeriu fazer um trabalho voluntário. Eu procurei então uma instituição, ajudando-a a fazer o orçamento/determinação de preço de vendas nesses produtos importados. Esse orçamento ficou bem atrativo. Os gestores da instituição se interessaram então em saber se ele era exeqüível. Comprovei que sim, sendo convidado a trabalhar efetivamente lá; tornei-me gestor de Tecnologia no LaraMara – Associação Brasileira de Assistência ao Deficiente Visual. Fiquei quase três anos, importando e comercializando equipamentos, tecnologias para este público. Posteriormente, fui trabalhar na Fundação Dorina Nowill, cuidando da área de Desenvolvimento de Novos Produtos. Desde que sai de lá, tenho me dedicado ao voluntariado e à consultoria, ajudando as empresas nesta difícil tarefa de contratar e reter profissionais portadores de necessidades especiais.
Quem é o Portador de Necessidades Especiais na sua concepção? Na grande maioria, ele é um cidadão que, a partir do momento que teve a oportunidade, ele corre atrás, se torna extremamente crítico, exigente. E o fato de ele sempre ter tido limitações a serem superadas, um “não” é aceito de outra forma, ele não desiste tão fácil. Além disso, é um consumidor potencial, de nível bastante elevado. Existe algum estudo recente? O IBGE realizou uma pesquisa bem-feita, mas que apresenta algumas lacunas. Por quê? Deixaram para o entrevistado a prerrogativa de se declarar deficiente ou não. E principalmente no caso de deficientes visuais, isso criou um problema sério, porque eles perguntavam se a pessoa tinha deficiência leve, média ou severa, e isso é muito complicado de se avaliar; cada um tem uma referência. Outra estatística interessante foi feita na Reatech (em 2007 - Feira Internacional de Tecnologias em Reabilitação, Inclusão e Acessibilidade) – o “maior congestionamento de bengalas e cadeiras de rodas”, como eles chamam. E ela é bastante expressiva. Os organizadores tabularam por tipo de deficiência e a idéia foi mostrar que este público é um consumidor em potencial (veja os resultados e perfil desse público na página 43).
Qual o maior paradigma a ser quebrado? O principal problema, o tipo de deficiência ou onde cada pessoa se enquadra – esse é o grande paradigma que a empresa deveria quebrar antes de tentar contratar. Porque quando se pensa dessa maneira, você já está limitando o deficiente. E é muito interessante algumas coisas: o que você me diria se eu te dissesse que existem alguns PNEs visuais que são programadores de alto nível, e que fazem até desenho, projeto de página na Internet, por exemplo? Para as pessoas em geral isso é um choque, mas eles usam o computador de igual para igual. A única diferença está na oportunidade que eles tiveram e nos softwares, que auxiliam no trabalho. O que as empresas deveriam fazer então é mudar a abordagem de tratar o profissional. Tratá-lo não somente como uma forma de atender a Lei, mas como um trabalhador como outro qualquer, dentro do seu conhecimento. Pegue a sua função como exemplo: você desempenha determinada atividade em troca de um salário. Para isso, ganhou um espaço de trabalho adequado, treinamento, incentivo. O mesmo deveria acontecer com os PNEs. Ou seja: você precisa tratar de forma igual, dentro de cada diferença, para que eles se tornem iguais.
E o retorno? A partir do momento que a empresa fornece as condições, as ferramentas, ele deve ser tratado como um funcionário como outro qualquer na companhia. Existe um termo que a gente usa, principalmente em PNE visual, que é reabilitado. Ele foi resgatado da condição de excluído; é preciso trabalhar também sua auto-estima, permitindo que ele consiga ter uma vida normal, ser até certa forma independente. E o retorno também. A empresa pode e deve cobrar resultados dessas pessoas, dentro das atividades que ela desempenha, prazos exeqüíveis, qualidade, proatividade.
O que diz hoje a legislação? A Lei de Cotas 2002/2003 diz que cada empresa com mais de 100 colaboradores tem a obrigação de preencher de 2 a 5% de suas vagas com PNEs. E temos que encará-la como um mal necessário, uma vez que se ela não existisse provavelmente ninguém estaria fazendo nada a esse respeito.
Como funciona a fiscalização? Na época em que a Lei saiu, o Ministério Público tratou a questão de uma forma bem compreensível. Ele chamou as empresas, entendeu que essas companhias precisariam buscar no mercado profissionais para se adequarem, mas foi estabelecido um prazo. O problema é que ele não foi cumprido pela maioria das empresas, e a desculpa mais comum é dizer que não há pessoas capacitadas nessas condições. E o Governo não fez nada a respeito. Da mesma forma que existe um Senai para a indústria, que prepara, treina e lança no mercado nova mão-de-obra, deveria existir nesse âmbito. Não existe uma ação focada para formação de mão-de-obra com características especiais. Algumas empresas fazem, sim, ações esporádicas (isso depois de vencer o primeiro prazo – que durou de dois a três anos).
Considerando que a maioria da mão-de-obra em serviços de limpeza é de baixa renda e de pouca escolaridade, como resolver a inclusão? É preciso olhar exatamente para isso: de onde vem essa mão-de-obra? E investir também na formação. Verificar, de acordo com as habilidades do profissional, o que não é possível ele executar. Por exemplo, em limpeza e conservação, um PNE visual praticamente não poderia atuar. Não estou dizendo que seja impossível – a área administrativa poderia ser uma solução. Em outros tipos de deficiência, poderia se pensar naqueles carrinhos de limpeza, onde a pessoa fica sentada – este equipamento poderia muito bem ser adaptado a um cadeirante. É preciso procurar saídas específicas. Procure ajuda, conhecimento, use a criatividade. Este profissional passará a ser especial, não só pela condição, mas pela solução que ele dará à empresa no cumprimento à Lei de Cotas.
Na sua visão, como esse público poderia ser motivado? O primordial é que este funcionário seja tratado como igual, dentro de suas diferenças. Segundo: ele precisa ter desafios de carreira, feedback do seu trabalho, treinamento, salário condizente com a importância e atividade desempenhada na empresa. Se esses pontos não forem praticados, de duas uma: ou este colaborador não chega para ocupar a vaga, ou a qualquer momento ele pode virar estatística de “turn-over” pelo fato de ter arrumado um salário maior, melhores condições. Veja: quando se quer recrutar um trainee, a empresa não vai às escolas, seduz o bom profissional, organiza e aplica uma seleção e depois treina? O correto seria se este colaborador PNE fosse treinado antes de ser contratado efetivamente. Isso ajudaria inclusive a aumentar a relação de mão-de-obra capacitada.
Vimos que a questão da arquitetura da empresa em acessibilidade está crescendo. Mas ainda falta muito para receber o usuário PNE. Qual a sua opinião sobre o assunto? Esse acesso universal que é idealizado, que todas as construções estejam aptas a receber os PNEs, aqui no Brasil isso está muito longe de acontecer. Os prédios novos têm pensado nessa questão, mas ainda existem muitos empreendimentos que necessitam de um retrofit nesse sentido. Mas esse problema das barreiras arquitetônicas, isso você encontra em qualquer ramo de atuação. A empresa deveria se preocupar em designar os funcionários para locais de trabalho onde a acessibilidade seja compatível com as características do portador. O contratante deve cuidar desse problema, que é dele, e não do prestador. Mas ressalto aqui que uma parceria na busca por soluções é bastante rico, com resultados bons para todos. Agora, para uma prestadora que enxerga naquele potencial cliente as condições arquitetônicas necessárias para PNEs, ela deve ter um interesse ainda maior de conquistar o contrato. Entenda bem: a solução para esta questão da inclusão não é só do RH, do facility, do operacional. Ela tem que passar por toda a empresa, ser de todos os setores, que devem estar enfronhados nisso.
Vemos que o colaborador não-PNE muitas vezes tem resistência quanto ao próprio PNE na empresa ou não sabe como tratá-lo. Como orientar esse funcionário? É verdade. É preciso conscientizar, quebrar este preconceito de algumas pessoas. A saída seria uma parceria com instituições especializadas, escolas que treinam, em todos os níveis, principalmente nesse. Caso contrário, será impossível a execução eficiente do trabalho. Veja um caso que presenciei certa vez: no LaraMara, onde atuei, existe um setor que capta e direciona pessoas para o mercado de trabalho. Eles trabalharam muito para selecionar um colaborador, que ao se dirigir à empresa com o endereço foi barrado pelo porteiro, que não estava bem treinado, conscientizado nessa questão. O porteiro achou que era engano do rapaz, e o mandou embora. O profissional, por sua vez, não teve a determinação necessária para insistir. O RH falhou nesse caso, ao não informar e educar toda a empresa. Por isso, se gasta tempo e dinheiro num processo quando situações não são avaliadas, elencadas. É preciso colocar a companhia, as pessoas em contato com os portadores de necessidades especiais, quebrando o preconceito e mostrando que eles são capazes, sim, de desempenhar várias e importantes atividades. O grande problema está no desconhecimento e na falta de engajamento como um todo. Como enxerga o futuro para os PNEs e empresas? Se verificarmos o histórico, cada vez mais os PNEs estão “colocando a cara para fora de casa”. Como eles são muito exigentes, reivindicadores, e – principalmente se é dada a oportunidade – você vai descobrir que ele agarrará com “unhas e dentes”. Um problema é que – não se tratando de uma prerrogativa dos deficientes – mas no Brasil há o assistencialismo do Governo. Embora a intenção seja boa, existe um salário, um benefício que é dado para os PNEs, mas na condição de que ela seja incapaz de trabalhar. Se ela optar por entrar no mercado de trabalho, não poderá voltar ao benefício. Por medo de ficar desempregado, acaba se acomodando. Uma solução seria que essa regra mudasse. E eu imagino que empresas que prestam serviços de limpeza estejam com grandes dificuldades diante dessas “bolsas” que o Governo oferece – e isso não se resume aos portadores de necessidades especiais.
Nota do Editor: É importante dizer que esta cadeia tem se movimentado para incluir os PNEs no mercado de trabalho. No entanto, por se tratar de um número substancial em mão-de-obra e carência de profissionais no mercado, as dificuldades são maiores, levando os sindicatos e associações a buscar formas de defesa. Vale lembrar da ação do Seac-SP em 2007, que obteve a liminar em agravo de instrumento no Tribunal Regional Federal da 3a Região (São Paulo/Mato Grosso do Sul) proibindo que as empresas filiadas à entidade sejam autuadas ou notificadas por não contratarem trabalhadores portadores de deficiências. A assessoria jurídica destaca que a demanda por essa mão-de-obra é muito maior que a oferta do INSS. Sendo assim, o Desembargador Federal Luiz Stefanini decidiu que não há "que obrigar-se as empresas, indistintamente, à contratação sem critérios, apenas pelo fato do contratado ser deficiente físico ou mental". A recomendação do Sindicato é contratar portadores de deficiências habilitados ao INSS e à Delegacia Regional do Trabalho.
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